Um Barco

sexta-feira, 13 novembro 2009

Mordaça – MPB4

A música, pelo menos para mim, funciona, em determinadas ocasiões, como um gatilho, disparando memórias, lembranças, fatos não ocorridos, embora desejados, vontades ilusórias de um passado incerto, enfim, abre portas de quartos, de porões, de armários.

Quando isso ocorre, é como uma comporta que despeja no coração uma enxurrada de emoções ou, por outro lado, pode ser, também, como uma rolha que é, cuidadosamente, retirada de uma garrafa deixando que o aroma forte permeie lentamente o ambiente. É uma sensação calma, embora angustiante, misturando nostalgias sem datas específicas, melancolias difusas, tristezas enevoadas.

Em muitos casos, a solidão, em qualquer de suas inúmeras facetas, se insinua, isso quando não é a causa primeira, marcando presença, firmando seu ponto, lembrando da inexorabilidade dos momentos a sós, nos quais somos nós contra nós mesmos. o que desejamos contra o que nos é oferecido, o que sentimos contra o que pensamos.

Se a letra da canção deixa, propositalmente, lacunas no sentido ou significado da mensagem, tudo está aberto à interpretação pelo imaginário, pelo inconsciente, por qualquer símbolo ou entidade interior que esteja à frente de nosso caminho, naquele momento. As palavras ouvidas ou lidas são decodificadas e incorporadas com uma carga de emoção talvez superior e desviada do que o autor tenha pensado, ao escrever.

Mas não interessa. A mensagem, depois de transmitida, não pertence mais ao autor e sim ao coração ou à mente de quem a recebe, passando a ser um pretexto para as próximas ações, independente de qualquer análise fria.

Sinceramente, não sei (e nem sei se gostaria de saber) da intenção de Paulo César Pinheiro, letrista da canção, ao escrever. Pode-se ler um protesto social , um lamento pelo fim de um amor, um grito suave de angústia pela incapacidade de mandarmos em nosso destino. A música de Eduardo Gudin foi muito valorizada pelo arranjo e interpretação do MPB-4.

Mordaça me faz, ao mesmo tempo, pensar e sentir. Pensar, tentando esmiuçar cada palavra, verso, estrofe em busca de referentes em minha própria vida. Sentir, absorvendo cada mensagem, subliminar ou não, tentando extrair da solidão do momento uma mordaça para a angústia primordial, veículo e causa dessa mesma solidão que se autoregenera e alimenta.

Mordaça é uma tentativa de luta, o que já é muito, mesmo que não seja bastante, mesmo que nem seja, mesmo assim.

 

Mordaça
(Eduardo Gudin & Paulo César Pinheiro)

mpb4_mordaca.mp3

Tudo o que mais nos uniu separou
Tudo que tudo exigiu renegou
Da mesma forma que quis recusou
O que torna essa luta impossível e passiva
O mesmo alento que nos conduziu debandou
Tudo que tudo assumiu desandou
Tudo que se construiu desabou
O que faz invencível a ação negativa

É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta
O interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar

Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva
E a felicidade amordace essa dor secular
Pois tudo no fundo é tão singular
É resistir ao inexorável
O coração fica insuperável
E pode em vida imortalizar

Filed under: Digressões,Música — Um Barco @ 7:23 pm

quinta-feira, 29 outubro 2009

Rosinha – Edu Lobo

Havia algo de rural na modernidade brasileira de 1967. Claro, havia as Ligas Camponesas, movimentos de lavradores, protestos (que perduram até hoje, com outros rótulos), intensa atividade literária e musical, em clima de denúncias e de loas à liberdade. Peças, musicais, canções cantavam um Brasil do campo, do litoral de pescadores, até de caminhoneiros (pré Roberto Carlos), num modernismo meio atávico e exótico, onde havia lugar, também, para cantar o amor.

A bossa nova já não atraía alguns compositores que a haviam abraçado, inicialmente, mas estavam mudando para um formato musical típico de festivais, com refrões fortes e de fácil memorização.

Um grupo enveredava pela música dita engajada, outro inventava o que viria a ser chamado de tropicalismo, arranjos sofisticados em contraste com uma linguagem popular, outro ainda buscava formas experimentais, pouco a pouco se afastando das harmonias tradicionais. Assim, era comum que num mesmo álbum, o artista ou compositor procurasse cobrir as várias tendências musicais.

Um exemplo disso é o álbum “Viola Enluarada”, de Marcos Valle, onde se poderia ouvir desde a canção-título, representativa de uma dessas novas tendências, até “Terra de Ninguém”, música de protesto rural, inspirada talvez pelas areias de Ipanema, passando por uma experimental “Próton Elétron Neutron”, por um frevo, “Pelas Ruas do Recife” e uma marcha lenta e triste “Bloco do Eu Sozinho”, esta objeto de um post deste Barco. Talvez um dos melhores álbuns da profícua carreira de Marcos Valle.

Em outra vertente, Edu Lobo, vencedor de festival em 1965 com uma canção de pescadores, “Arrastão”, também apresentada em outro post. Na segunda metade de 1967, Edu Lobo, tendo como letrista Capinan, um de seus parceiros constantes, ganharia mais um festival, dessa vez com “Ponteio”, outra canção que, usando elementos do interior do Brasil, trazia harmonia e arranjo sofisticados, mas que levantaram o público.

Ainda em 1967, lança um “LP”, “Edu”, onde mantinha uma unidade conceitual, abordando temas tradicionais e mostrando formas modernas de rítmos típicos, à semelhança do que fizera em “Ponteio”, na “Embolada” ou no “Chorinho de Mágoa”, sem esquecer um pouco de crítica social, embora disfarçada, no “Jogo de Roda”.

Desse álbum, escolhi “Rosinha”, música de Edu Lobo e letra de Capinam. “Rosinha” é, no meu modo de pensar e sentir, a idealização de um amor daqueles típicos dos adolescentes. A garota inatingível, o jeito ingênuo, tranças, a simplicidade dos gestos juvenis, tudo num cenário caracteristicamente rural.

O arranjo parece captar muito bem esse clima meio nostálgico, meio triste, meio melancólico. O solo inicial de trombone, como que antecipando o espírito da letra, a voz aveludada de Edu Lobo transmitindo o desalento. Até hoje ouço essa canção com ouvidos de adolescente e, de certa forma, me identificando com o jovem e seu amor não correspondido.

Rosinha
(Edu Lobo & Capinan)

edu_rosinha.mp3

Rosa vai com a sombrinha caminhando
Pra onde Rosa caminha
Lá vou eu me desviando
Pra onde Rosa caminha
Lá vou eu me desviando

Rosa trança e mal-me-quer
O vento vai levantando
Rosinha se não me quer
Eu deixo a chuva te molhando
Rosinha se não me quer
Eu deixo a chuva te molhando

Rosa vai com a sombrinha
Caminha sem responder
Andorinha, pastorinha
Eu tomo chuva por você

Vou na serra buscar flôres
Mal-me-quer e girassol
Prometi um passarinho
Cardeal ou curió
Prometi um passarinho
Cardeal ou curió

Rosa vai com a sombrinha
Rosa vai com o namorado
Pra onde Rosa caminha
Sigo eu abandonado
Pra onde Rosa caminha
Sigo eu abandonado

Ô Rosa…

Filed under: Música — Um Barco @ 8:53 pm

terça-feira, 20 outubro 2009

Torpor

Nada assistir
Por não apreciar,
Não discernir,
Não enxergar.

Nada entender
Por não concordar,
Não perceber,
Não acatar.

Nada querer
Por não avocar,
Não exercer
Não se esforçar.

Nada assumir
Por não se engajar,
Não aderir,
Não confiar.

Nada sentir
Por não internar,
Não permitir,
Não aceitar.

Nada deixar
Por não construir,
Não afirmar
Não definir.

Nada esquecer
Por nada lembrar,
Nada valer,
Nada importar.

___________________________

Evangelho
(Paulo César Pinheiro & Dori Caymmi)

dori_evangelho.mp3

Eta mundo que a nada se destina
Se maior se faz, mais se arruína
Se mais quer servir, mais nos domina
Se mais vidas dá, são mais os danos
Se mais deuses há, mais são profanos
Estes pobres de nós seres humanos

Eta vida, essa vida de infelizes
Quanto mais coração, mais cicatrizes
No amor é que a dor cria raízes
De dentro do bem é que o mal trama
Da felicidade cresce o drama
Dessas tristes de nós vidas humanas

Eta tempo que em pouco nos devora
O pavio da vela apagará
Quanto mais se partir tempos afora
Mais nos tempos de agora se estará
E mais tarde quando o tempo melhora
A nossa mocidade onde andará?

Eta morte que acaba tempo e vida
O mundo não conseguiu saída
É o fim mas pode ser o começo
Quem tenta fugir faz sempre o avesso
E quanto mais vidas se cultiva
Mais a morte alimenta a roda viva

Filed under: Música,Poesia — Um Barco @ 8:31 pm

domingo, 4 outubro 2009

Um dia…

Um dia é uma vaga lembrança de um passado incerto e, por isso mesmo, confiável, na medida em que é hoje na mente o que desejamos e não o que efetivamente foi.

Um dia a casa não vai cair, não iremos mudar, nada houve.

Um dia é a consciência abafada pela percepção cotidiana e rotineira.

Um dia é o preço temporário pelo medo da noite ou o peso necessário para atravessar incólume a madrugada.

Um dia é a esperança tão raivosa quanto inútil de um desabafo, uma revolta contra aquilo que nos aflige, mesmo que só dependa de nós mesmos sua solução.

Um dia é um sonho possível, além da crua verdade que teimamos em ocultar de nós mesmos, mas é a impossibilidade assumida, porquanto atrelada a nossos receios, nossa incapacidade assumidas.

Um dia é uma mentira, uma ilusão vendida, uma realidade que não se concretiza aquém do desejo ou além do esperado.

Apesar de tudo, um dia sempre chega, aparece, acontece, ocorre, despenca, não importa qual seja sua manifestação, não importa o que trouxer, não importa.

Um dia, porém, é o aparecer repentino, o retorno prometido, a vontade finalmente satisfeita, o sorriso antes reprimido, agora liberto, o pranto alegre, a tentativa com sucesso.

“Um Dia”, além de tantos outros títulos, ou parte de títulos de músicas, é uma canção do Caetano Veloso, finalista do II Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record de São Paulo, em outubro de 1966 e prêmio de melhor letra.

Em junho desse mesmo ano, no II Festival Nacional de Música Popular Brasileira, da TV Excelsior, Caetano logrou a quinta colocação com a música “Boa Palavra”, canção veladamente engajada.

Ambas as canções foram defendidas por Maria Odete, uma bonita cantora, de voz forte e interpretação um pouco empostada, porém bastante expressiva. Sobre sua interpretação de “Boa Palavra”, Zuza Homem de Mello em seu livro “A Era dos Festivais”,  relata que ela foi “…ovacionada entusiasticamente ao interpretar a curiosa melodia de Caetano Veloso, no arranjo de Antonio Adolfo, com uma garra impressionante, exagerada até sob certos aspectos, mas que fez vibrar a assistência…”.

Minha lembrança primeira de “Um Dia” é, justamente, na voz de Maria Odete, quando assisti à fita da final do festival. Posteriormente, a canção foi gravada por seu autor, mas com um arranjo bem diferente e que, confesso, não me agradou.

Deixo, abaixo, o vídeo do You Tube, trazendo a interpretação da final do festival. Nele, um Caetano Veloso quase juvenil e ainda não tropicalista mostra sua satisfação pelo êxito da canção que, infelizmente, foi esquecida, enquanto “Boa Palavra” seria gravada, posteriormente, por Elis Regina.

https://www.youtube.com/watch?v=5-w0hwnZn1o

Um Dia
(Caetano Veloso)

Como um dia, numa festa
Realçavas a manhã
Luz de sol, janela aberta
Festa e verde o teu olhar

Pé de avenca na janela
Brisa verde, verdejar
Vê se alegra tudo agora
Vê se pára de chorar

Abre os olhos, mostra o riso
Quero, careço, preciso
De ver você se alegrar

Eu não estou indo-me embora
Estou só preparando a hora de voltar

No rastro do meu caminho
No brilho longo dos trilhos
Na correnteza do rio
Vou voltando pra você

Na resistência do vento
No tempo que vou e espero
No braço, no pensamento
Vou voltando pra você

No Raso da Catarina
Nas águas de Amaralina
Na calma da calmaria
Longe do mar da Bahia
Limite da minha vida
Vou voltando pra você

Vou voltando, como um dia
Realçavas a manhã
Entre avencas, verde-brisa
Tu de novo sorrirás

E eu te direi que um dia
As estradas voltarão
Voltarão trazendo todos
Para a festa do lugar

Abre os olhos, mostra o riso
Quero, careço, preciso
De ver você se alegrar

Eu não estou indo-me embora
Estou só preparando a hora de voltar

Filed under: Digressões,Música — Um Barco @ 9:46 pm

sexta-feira, 25 julho 2008

Modinha

Ler sobre uma música entitulada “Modinha” leva, invariavelmente, as pessoas de minha geração a pensarem numa rosa na janela, evocando a belíssima canção escrita por Sérgio Bittencourt e vencedora do III Festival de Música Popular Brasileira, de 1968. Não é o caso deste post.

Tampouco discorrerei sobre o gênero musical modinha, que pode ser visto em outras fontes, uma delas o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, fantástica obra de referência sobre nossa música.

Mais recentemente, em 2000, Francis Hime compôs a Sinfonia do Rio de Janeiro de São Sebastião, com cinco movimentos, um dos quais, justamente chamado “Modinha”, simbolizando o Brasil império. Também não é esta, a modinha deste post.

Esta Modinha é uma “Canção do Amor Demais”, nome do álbum emblemático, lançado em 1958, considerado marco da bossa nova, pelo acompanhamento de violão de João Gilberto, ao fundo, para a música “Chega de Saudade” e que reuniu músicas de Tom e Vinicius escritas especialmente para Elizeth Cardoso. Posteriormente, em 2003, Olívia Byington gravou as canções do amor demais e, em 2005, regravou para o filme “Vinicius”, sendo esta a interpretação que poderão ouvir.

 Modinha é uma daquelas canções que me tocam, embora não tenha feito parte de nenhum acontecimento ou fato importante de minha vida. Nem me lembro qundo a ouvi pela primeira vez. Na verdade, só depois de tê-la ouvido com o arranjo desse post é que a melodia me marcou. Não conheço detalhes motivacionais da letra, para quem era dirigida ou até mesmo se há um amor envolvido, já que não fica claro, na letra, a que ilusão o poeta se refere.

Um pouco a letra, outro tanto a música, um pedaço do arranjo e uma boa pitada da interpretação de Olívia Byington fazem com que, ao escutá-la, eu entre num estado que oscila entre a angústia e o desabafo, como querendo arrancar do peito a emoção muda, calada, parada, contida, inútil, quando adormecida, mas que, despertada, infla, amplia, prenche todo o imenso vazio e o vácuo que, paradoxalmente, preenche até os espaços que a tristeza ou a solidão não conseguem ocupar.

Ouço a modinha deste post como quem olha em volta e vê apenas um reflexo de si mesmo em mil espelhos, tudo aquilo que imagino ter sido, que fui, ou não, que não serei ou gostaria de ser, mesmo sabendo que nunca venha a ocorrer e sinto uma dor imensa crescendo, apertando a garganta até, aos poucos, ir-se disssolvendo, deixando o vazio abençoado que sucede a qualquer dor.

Ouço esta modinha com o gosto das noites em que o violão falava por mim e traduzia aquilo que a boca não ousava pronunciar, num passado já longínquo e, como a letra pede, sinto a emoção que ela semeia e que se derrama em mim até o silêncio final, que paira no coração, meio tristeza, meio alívio, e aflora nos olhos, lavando a alma.

Modinha
(Vinícius De Moraes e Antonio Carlos Jobim)

modinha.mp3

Não!
Não pode mais meu coração
Viver assim dilacerado
Escravizado a uma ilusão que é só
Desilusão.

Ah, não seja a vida sempre assim
Como um luar desesperado
A derramar melancolia em mim,
Poesia em mim.

Vai, triste canção, sai do meu peito
E semeia a emoção
Que chora dentro do meu coração.

Filed under: Música — Um Barco @ 10:35 am
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