Um Barco

sexta-feira, 13 agosto 2004

Ser ou não ser…uma ameba!

“Eu queria ser uma ameba”, ela disse.

Na ocasião, a frase até que se encaixou e era apropriada ao contexto do papo, que versava sobre coisas como, ser o que se é, ser o que os outros pensam, ser a imagem que os outros fazem, ou seja, papo-cabeça, daqueles que exigiriam não um frio MSN Messenger, mas uma mesa de bar à beira da praia, chopes, etc.

No dia seguinte, que por acaso é hoje, me pus a meditar sobre a profundidade daquela frase, e pensei numa ameba. Vocês já viram fotos ou desenhos de amebas. Aquele “bicho” microscópico, informe, de aparência gelatinosa, cujo referente mais próximo seria, talvez, uma água-viva daquelas esbranquiçadas que aparecem justamente no verão, quando freqüentamos as praias, para encher nossa paciência e causar irritações.

Chegando em casa, lá fui eu buscar uma ameba nos “googles” da web. Pensei até em consultar meu filho, formado em biologia, afinal, mesmo metaforicamente, a frase representava um questionamento autocrítico, quase uma angústia existencial, mesmo sendo dita em tom de brincadeira.

Tudo bem que eu já conhecia algo, mas queria impressionar os leitores deste blog com meus vastos conhecimentos (de aluguel, é claro). Li que a palavra “ameba” vem do grego e significa “mudança”. Vi uma microfotografia, vi até um filmete. E lá estava ela, pseudópodes, ou falsos pés (seria algo como um “scarpin”?), a mutação constante de forma (inconstância?), a capacidade de envolver os alimentos ou presas para englobá-los em seu seio e assimilá-los (sedução?).

E pensei, “peraí!” (desculpem a grafia, mas é assim que a gente pensa). Isso nós já somos! Usamos sapatos e roupas diferentes, nos aproximamos das “presas” e tentamos “envolvê-las” em tentáculos de encanto.

E a luz se fez em mim. Somos todos amebas! Pronto, caríssima amiga, você já é tudo, até e inclusive uma “ameba”. Com a ressalva que nem tudo é o que parece mas tudo pode ser, desde que queiramos ver.

Bem, só faltava a música para o post, afinal quase todos os meus posts possuem uma. E essa foi fácil, se eu me ativesse ao atributo “mudança” que, afinal, dá à ameba seu nome.

 

Metamorfose Ambulante
(Raul Seixas)

metamorfose.mp3

Prefiro ser essa metamorfose ambulante
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

Eu quero dizer agora o oposto do que eu disse antes
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Sobre o que é o amor,
Sobre que eu nem sei quem sou

Se hoje eu sou estrela, amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio, amanhã lhe tenho amor
Lhe tenho amor, lhe tenho horror, lhe faço amor, eu sou um ator

É chato chegar a um objetivo num instante
Eu quero viver nessa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Sobre o que é o amor,
Sobre que eu nem sei quem sou

Se hoje eu sou estrela, amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio, amanhã lhe tenho amor
Lhe tenho amor, lhe tenho horror, lhe faço amor, eu sou um ator

Filed under: Digressões,Música — Um Barco @ 5:38 pm

sexta-feira, 6 agosto 2004

Sabe Gente…

Não poucas vezes, me pergunto o que fez com que este blog chegasse até aqui. Sim, porque eu sei como começou e garanto que, na época, jamais imaginei que iria preencher tantas páginas.

Quem se der ao enorme trabalho de ler meus dois primeiros posts, perceberá o tom irônico que, na verdade, disfarçava a real intenção, conhecer a estrutura de um blog, e eu falo em “html”, “xml”, etc. Isso fica mais claro nos links dos comentários, que fiz questão de manter (o tal “Mais gente lendo…loucos…”). E mantive os dois posts, como um lembrete para mim mesmo.

A partir do terceiro e, principalmente, do quarto post, algo despertou em mim, algo, tenho certeza, que aflora em muitos(as) “blogueiros(as)”. Talvez a tal “força estranha” do Caetano que, em nosso caso não nos leva (apenas) a cantar, mas a “blogar”.

E nos transformamos, não em uma outra pessoa, mas em uma persona meio oculta ou voluntariamente contida de nós mesmos que, na hora em que nos sentamos para publicar algo, assume o comando de nossa vontade e nos faz escrever ou desenterrar escritos antigos, reprimidos por nossa autocrítica.

E passamos a ser conhecidos (por quem não nos conhece, é claro) pelo que postamos e não pelo que somos ou cremos ser, o que não quer dizer que seja ruim ou bom. Um rótulo virtual, talvez.

Já pensei em deixar Um Barco atracado em alguma página, com algum último post, estático, porém sem nenhuma menção de despedida, afinal, nunca é bom destruir as pontes por onde passamos. A volta é sempre uma possibilidade. Uma força, porém, me leva a “blogar”, como na música.

Como já é de meu feitio, fecho o post com uma música que traz alguma leve afinidade com o clima do post. A música, de Gilberto Gil, é uma [espécie de] resposta e uma homenagem a “Eu Preciso Aprender a Ser Só”, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle”, tanto que esta é citada em melodia e letra. Eliminem da letra, no que diz respeito ao meu estado de espírito, qualquer menção a tristeza, já que tenho atravessado uma calmaria emocional repousante, me sentindo, como disseram os Secos e Molhados, “…muito leve, leve, leve, leve, pluma…”.

Preciso Aprender a Só Ser
(Gilberto Gil – 1973)

precisoaprenderasoser.mp3

Sabe, gente
É tanta coisa pra gente saber
O que cantar, como andar, onde ir
O que dizer, o que calar, a quem querer

Sabe, gente
É tanta coisa que eu fico sem jeito
Sou eu sozinho e esse nó no peito
Já desfeito em lágrimas que eu luto pra esconder

Sabe, gente
Eu sei que no fundo o problema é só da gente
É só do coração dizer não quando a mente
Tenta nos levar pra casa do sofrer

E quando escutar um samba-canção
Assim como
“Eu Preciso Aprender a Ser Só”
Reagir e ouvir
O coração responder:
Eu preciso aprender a só ser

Filed under: Digressões,Música — Um Barco @ 6:48 pm

domingo, 1 agosto 2004

Sobre o difuso…

Apesar da formação profissional me direcionar ao cartesiano, confesso que gosto do difuso, do incerto, do apenas sugerido.

Me agrada a obra aberta, inacabada, a palavra que sugere mais do que explica, o símbolo que instiga mais do que revela.

Gosto da imagem enevoada, impressionista, detalhes (aparentemente) desfocados que, com a distância, ganham contornos nítidos e luminosos. Negação do conhecimento pela proximidade.

Aprecio a arte que deixa a interpretação inteiramente a meu cargo. A obra me indica caminhos, tendências. Escolho o significado que quero, de acordo com o que sinto na ocasião.

Que eu não seja, por favor, rotulado de elitista ou purista. Nada do que declarei exclui o figurativo, o claro, o fechado. Um soneto, de métrica clássica, uma música de polifonia clara, um romance com final determinado também me agradam. O que desejei transmitir foi minha preferência genérica pela sutileza.

Já vi e ouvi muitos experimentalismos na década de 60 para me impressionar facilmente com propostas que se dizem “avançadas” ou “transgressoras”.

Gosto, especialmente, de letras de músicas que possuem viés simbolista ou aberto, bem como daquelas que nada dizem, mas carregam uma sonoridade forte, pelas palavras usadas.

Atentem para a letra de “Açaí”, de Djavan. Nenhum sentido aparente nas palavras, entretanto, principalmente na gravação de Gal Costa, uma enorme musicalidade, casamento de letra, música, ritmo.

Há muito de simbolismo nas primeiras letras de Caetano Veloso, infelizmente pouco conhecidas, já que antecedem “Alegria, Alegria”, música que o tornou famoso.

Poderia escolher letras de Caetano, como “Um Dia”, “Boa Palavra” ou “Clara”, para ilustrar o post e minha preferência pelo difuso, mas optei por Jessé cantando a música “Era Um Dia” (não confundir com outra música gravada por ele, “Um dia…”).

Era um Dia
(Oswaldo Montenegro)

eraumdia.mp3

Era um dia de manhã
Como nos dias de manhã se pode ser
Claro como um dia claro
É como a gente,
É pouco mais do que ser claro
É o que se pode ser

Avalia o coração
Como teu coração também se julga ser
Forte como a chuva é forte
É como a gente,
É pouco mais do que ser forte
É o que se pode ser

Era tudo como tudo
É como se pudesse resultar em nada
Ah eu tenho medo pelo nosso amor
E como o dia amanhecer

Era tudo como tudo
É como se pudesse resultar em nada
Ah eu tenho medo, como se pode ter medo
Quando está feliz

Filed under: Digressões,Música — Um Barco @ 11:35 am

quinta-feira, 22 julho 2004

Velho Forte

 

Nem verdade tristonha, nem mentira risonha, o carteiro, que nem meu nome gritou, deixou um envelope pardo que, pelo tamanho, sabia conter uma revista. Abri, sem ver o remetente, e vi você assim, velho forte, imponente, na capa, abrindo as comportas de meu passado.
forte
forte2 E lá estava você, em várias páginas, em vários ângulos, um dos quais, como esse, nunca visto por meus olhos de criança e adolescente. E lá estava eu, anos e anos atrás, invisível na foto, mas presente em cada lado, em cada parede inclinada, por onde deslizava sobre uma palha de coqueiro.
Em seu redor, as brincadeiras da infância e a contemplação adolescente do mar que você até hoje vigia, aquele mar ora azul, ora verde, escravo do clima, das algas e das águas-vivas.
imagens/forte3 
forte5  Velho forte das férias de minha infância e juventude. Perto de você me senti homem, ao receber o primeiro beijo, da primeira namorada. Alguns anos depois, algumas namoradas depois, bem a seu lado, numa noite, me senti humanamente falível, com a primeira bebedeira, por término de namoro (sim, levei um fora). 
Quando a noite descia, lenta, sua silhueta emoldurada pelo laranja-vermelho-negro do mergulhar do sol nos dizia que era hora de voltar para casa, após um dia cheio de banhos de mar, jogos de bola, brincadeiras nas tardes mornas. E, muitas vezes, voltávamos para você à noite, velho forte, mar prateado pela lua, à beira do qual, em rodas de violão, tantas vezes cantava com os amigos amores ainda não vividos.
 forte4 
Não morei perto de você, velho forte, a não ser nos meses de férias, mas me sinto agora, vendo as fotos da revista inesperada, bem próximo de novo às suas paredes,  bem junto de meu passado, bem longe do meu presente que, de uma forma ou de outra, foi influenciado por você. Mas sinto, e bem forte, uma enorme paz, ao me lembrar de tudo isso.
Filed under: Digressões — Um Barco @ 9:09 pm

domingo, 4 julho 2004

Eu canto o Corpo elétrico

Um comentário de Loba ao meu post “Olhar…substantivo…”, uma visita ao seu blog, a leitura do post “Invasão do querer”, motivação para um novo post, cujo título poderia ser (e tem tudo a ver com) “Vontade e Desejo”. No comentário, ela se define como loba uivando, em sexta-feira de lua cheia e em “Invasão do querer” fala da vontade de amar, vontade de sexo.

O título deste post, do poeta americano Walt Whitman, é bastante conhecido (pelo menos em inglês – I sing the Body electric) e título de um dos poemas de sua obra “Leaves of Grass”. Já foi conto de Ray Bradbury e, posteriormente, episódio da série de TV “Além da Imaginação” (The Twilight Zone) em 1962, título de discos do Weather Report (com Wayne Shorter e Jaco Pastorius) e do percussionista brasileiro Dom Um Romão, além de ser o título da música tocada e dançada pelos alunos, em sua formatura, no filme “Fama”, o que mostra a força da frase no imaginário americano.

No poema, Walt Whitman glorifica o Corpo, não apenas como objeto sexual, porém em toda sua beleza e funcionalidade.

E é o corpo elétrico que, para mim, define o desejo e me leva a essa digressão sobre vontade e desejo.

Vontade é querer, desejo é necessitar; vontade é predisposição, desejo é iminência; vontade é pensar, desejo é sentir; vontade está no interior, desejo aflora na pele; vontade independe da presença, desejo emerge na proximidade; vontade é contida, desejo é abortado; vontade é o que Loba descreve em “Invasão do querer”, desejo é o que Gonzaguinha explicita em “Infinito Desejo”.

Longe de mim esgotar o tema. Apenas um breve solilóquio dedicado a Loba, muito mais silencioso que seu uivo.

Filed under: Digressões — Um Barco @ 10:13 pm
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