Um Barco

quinta-feira, 26 abril 2007

Poço

Nem se nota, nem se percebe, quando, de uma calmaria aparente ou mesmo verdadeira, vai lentamente aflorando ou mergulhando em nós um fio de inquietação, de incerteza, como a larva que desenha caminhos doloridos sob a pele. Vem devagar e, a partir daí, percebemos sua aproximação, com um sentimento de inexorabilidade.

Pode vir de dentro, daquela lembrança que, achávamos, estava morta e, como uma serpente mudando de pele, se insinua na memória, como algo vivo que é. E vai se espalhando, como uma gota de sangue na água e vai colorindo tudo com o rosa do choque, com a turvação, bruma seca na manhã da emoção.

Pode vir de fora, de uma palavra que faltou ser dita, de um olhar mais triste que o esperado, de um silêncio indesejado, de uma negação inesperada, de uma afirmação crua, mas verdadeira. Como um ferrão de inseto, que vai penetrando, pele adentro, perfurando vasos, expondo o sangue à sede primal e necessária.

Em ambos os casos, afundamos em nós mesmos, no poço interior que cada um tem, mesmo que oculte, mesmo que esteja enterrado pela ilusão da vida cotidiana. E lá ficamos, olhando para as paredes circulares de nossos receios, nossas ilusões natimortas, nossa realidade úmida, escura.

Não chega a ser desespero nem fatalidade. É como se fosse algo que sabíamos entranhado e que nos faz cientes, uma vez mais, de sua existência. É um somatório de angústias vãs e descabidas, que teimamos em exumar, como se sua percepção fosse a porta para uma paz posterior.

Após algum tempo, após a absorção daquilo que, sabemos, não tem motivo para estar ali conosco, em nós, começamos a escalar as paredes escorregadias de nossa incapacidade, lentamente, em direção à luz lá no alto, ao fim do poço, início do resto da existência.

É como uma esperança, nascida de um abandono, de um desvario, de uma autonegação, como uma filha bastarda, mas desejada, por necessária.

É a circularidade de emoções fugazes, que duram o tempo da canção que ouvimos e que nos transporta, muitas vezes contra nossa vontade, para além do exterior, em direção ao infindável mar interior, onde, aí sim, navegar é sempre preciso.

A Terceira Lâmina
(Zé Ramalho)

terceira_lamina.mp3

É aquela que fere, que virá mais tranqüila
Com a fome do fogo, com pedaços da vida
A com a dura semente, que se prende no fogo
De toda multidão
Acho bem mais do que pedras na mão
Dos que vivem calados, pendurados no tempo
Esquecendo os momentos, na fundura do poço,
Na garganta do fosso, na voz de um cantador

E virá como guerra, a terceira mensagem,
Na cabeça do homem, aflição e coragem
Afastado da terra, ele pensa na fera,
Que o começa a devorar
Acho que os anos irão se passar
Com aquela certeza, que teremos no olho
Novamente a idéia, de sairmos do poço
Da garganta do fosso, na voz de um cantador

Filed under: Prosa — Um Barco @ 4:01 pm

sábado, 21 abril 2007

Conjugação

mundo_nuevo_interludio.mp3

Não quis saber do futuro.
Nos tempos do deleite
Vivia só no presente, sorvia.
Passado era como um sonho,
Que logo desaparece
Ao levantar das pálpebras.
O futuro não me traria nada
Além do que já desfrutava.

Não quero saber do passado.
Atualmente, e mais que nunca,
Quero viver no futuro,
E deixar o passado ficar,
Principalmente quando não soma,
Quando subtrai do presente
O tempo valioso que uso
Para pensar em tudo que farei.

Pensarei muito no presente
Quando já for passado,
E o futuro chegar.
Viverei apenas num passado
Intangível, impalpável e, por isso,
Possível, já que só meu,
Subjetivo, interior, estático.
Por hora, não lembro, não penso, espero.

Filed under: Poesia — Um Barco @ 10:08 am

sexta-feira, 13 abril 2007

Nabucodonosor – Stanislaw Ponte Preta

Sátira, deboche, duplo sentido, malícia, tudo isso está entranhado em nossa tradição musical, tanto quanto a riqueza melódica e a sofisticação harmônica.

Hoje em dia, com o “politicamente correto” e seus defensores radicais pairando, muito do que já foi escrito e cantado não teria mais espaço ou, numa condição mais extrema, seriam fruto até de ações judiciais.

Exemplos? Será que os versos de “Nega do cabelo duro”, “…nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia?…”, de David Nasser e Rubens Soares, lançado no carnaval de 1942 e “…Êta nega tu é feia/Que parece macaquinha/Olhei pra ela e disse/Vai já pra cozinha/Dei um murro nela/E joguei ela dentro da pia…”, em “Minha nega na janela”, de Germano Mathias e Doca, com essa carga imensa de racismo e violência contra a mulher (segundo a visão do politicamente correto), teriam boa aceitação, hoje?

E que dizer de “..olha a cabeleira de Zezé, será que ele é, será que ele é?…”, de João Roberto Kelly e Roberto Faissal? Homofobia clara e explícita, para os padrões atuais?

Sérgio Porto (11/01/1923 – 29/09/1968), mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta, foi cronista, escritor, radialista e compositor. Seu humor ferino e mordaz deixou marcas, principalmente pela série “Festival de Besteiras que Assola o País” ou “FEBEAPÁ”, onde atacava, principalmente os políticos (por exemplo, ele usava o termo “depufede”, para deputado federal). Há quem leia traços de machismo e racismo em seus escritos e até alguma discriminação contra o homossexualismo.

Compôs poucas músicas e a mais conhecida é, sem dúvida, “Samba do Crioulo Doido”, gravada pelo Quarteto em Cy no álbum “Em Cy Maior”, de 1968.

Em 2006, houve uma tentativa de renascimento do gênero musical marchinha, inclusive e principalmente no carnaval de 2007, com um festival e até um musical só de marchas, onde parte dos versos acima foram cantados.

Escolhi, para este post a marchinha, “Nabucodonosor”, também gravada pelo Quarteto em Cy. Ela satirizava um fenômeno da época, os desfiles de fantasia, em particular os dos bailes do Municipal e seus personagens cobertos de plumas, paetês e muita vaidade.

No site O Caixote há mais informações sobre Stanislaw Ponte Preta e sobre essa canção, como por exemplo, “- O travesti Rogéria era a Roberta Close do gênero, nos anos 60. Em homenagem a ela, e à turma do terceiro sexo, “já quase passando pra segundo”, Stanislaw acabou fazendo a Marcha da Bicha Louca para ela…”.

A censura, na época, não permitiu o título original, mudando para Nabucodonosor. A interpretação das baianas do Quarteto em Cy valoriza, e muito, a letra, com entonações características do personagem.

A canção, muito difícil de encontrar, tem todos os elementos típicos de seu gênero, com introdução na base do “la-ra-ra” e, pelo que pude pesquisar, foi gravada postumamente em 1973, num “compacto” juntamente com “Baioque”, não tendo feito parte de nenhum álbum do quarteto.

Nabucodonosor
(Sergio Porto – “Stanislaw Ponte Preta”)

nabucodonosor.mp3

Nunca mais quero sair fantasiado
Nunca mais quero brincar no carnaval
Nunca mais, ai, nunca mais serei vaiado
Naqueles bailes do Municipal

Foi no ano passado, eu me fantasiei, imaginem vocês
Fui pra lá carregado, todo enfeitado, com mil paetês
Com miçangas e vidrilhos, apliques, lantejoulas
Bordados eu tinha até mesmo nas minhas ceroulas

Quantas noites tive que ficar acordado
Quantas noites eu cheguei mesmo a passar mal
Quantas noites eu caprichei nos meus babados
Pra quase ir em cana no final

Começou o desfile, a fofoca comia em pleno salão
Sonho de Messalina, não sabe de quem, levou um bofetão
Esplendor Renascentista foi desclassificado
Aí deu um pulo pra cima e caiu desmaiado

Foi então que desisti de desfilar
Foi então que abandonei a passarela
Foi então que começaram a me estranhar
E o povo já gritava prende ela
E o povo já gritava prende ela

Terminou o desfile eu só não chorei porque não sou mulher
E mesmo que fosse, eu nunca seria como uma qualquer
Fui pra minha casa curtindo a minha dor
Rasgado e amassado de Nabucodonosor

Filed under: Música — Um Barco @ 4:18 pm

quinta-feira, 5 abril 2007

Ponto de Fuga

Lá estava eu, meio de tarde, início de outono ainda com jeito de verão, quente, caminhando com outras pessoas, paisagem cinza mesclada de verde, ou vice-versa, dependendo do ângulo, da visão, do ânimo.

Poucos pássaros esvoaçavam em torno de nós, silenciosos como não deveriam ser.

O suor que o sol extraía do corpo, quando exposto, era combatido e evaporado por um vento persistente e refrescante, nas poucas sombras que cobriam nosso breve percurso.

Uma sensação fria, desalento, abandono, tudo o mais contrariava o calor que teimava em perturbar qualquer tentativa de concentração, que afastava a vontade de lembrar, de reviver, de voltar a ser.

Lá estava eu, mesmo sem querer, obrigado por mim mesmo àquilo que, naquele momento, me atingia, me afetava, a mim e às pessoas silenciosas, naquele caminhar.

E eu observava em cada olhar um infinito próprio. Em muitos, a tristeza explícita, em outros, o vazio do não querer acreditar, em poucos a seriedade dos que entendem que o inexorável é absoluto.

Era tudo meio irreal, como ocorre nas horas em que a vontade de não estar suplanta a percepção objetiva. Era o humano face a face com eterno.

Chegamos, eu e as outras pessoas, ao destino final da caminhada para escutar as palavras tantas vezes ouvidas, em formas diversas, mas com o mesmo sentido.

E ouvimos, olhos fixos num ponto à frente mas que, na verdade, enxergavam muito além, muito mais que o horizonte cinza e artificial que nos cercava.

E respondemos, mecânica e reflexivamente, sem ao menos procurar entender, analisar, elaborar.

E assim fiquei, até o fim, olhos parados, mente vazia, coração trancado, como que observando uma estrada reta à minha frente, laterais se estreitando até que, lá longe, se transformavam num ponto de fuga que, no momento, simbolizava o futuro, conforme percebíamos, estreito, finito.

Naquele momento, nem sei bem porque, me lembrei de Olívia Byington cantando, cristalinamente, a canção abaixo.

E o momento passou, deixando a realidade invadir, mais uma vez, os sentidos até então amortecidos.

E, contudo, a vida continuou, apesar do vazio aparente, apesar de nada.

Água e Vinho
(Egberto Gismonti & Geraldo Carneiro)

agua_e_vinho.mp3

Todos os dias passeava secamente na soleira do quintal
A hora morta, a pedra morta, a agonia e as laranjas do quintal
A vida ia entre o muro e as paredes de silêncio
E os cães que vigiavam o seu sono não dormiam
Viam sombras no ar, viam sombras no jardim

A lua morta, a noite morta, ventania e o rosário sobre o chão
E um incêndio amarelo e provisório consumia o coração
E comecou a procurar pelas fogueiras, lentamente
O seu coração já não temia as chamas do inferno
E das trevas sem fim, haveria de chegar o amor

Filed under: Prosa — Um Barco @ 10:00 pm

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