Em 1919, um folião chamado Júlio da Silva ou Júlio Santos, o nome varia, segundo uma busca simples e sem grandes formalismos, que realizei na Internet, saiu fantasiado segurando uma placa onde constava “Bloco do Eu Sozinho”. Encontrei, inclusive, uma foto pequena e sem muita nitidez, aparentemente do folião, onde aparece, creio, o número 43, em cima e à esquerda, no cartaz (talvez o ano da foto).
Saber de alguém só, com sua própria alegria (ou não, quem sabe?), pulando sozinho em meio a uma multidão, despertando, apenas com seu visual, emoções contraditórias, função do momento de cada um, exerceu um enorme fascínio sobre mim, mesmo sem nunca ter visto o personagem.
Por ocasião de sua morte, em 1979, a fantasia já era usada por muitos, em muitas cidades e, no corrente ano, a tradição será mantida, “Pelas mãos do funcionário público Vilmar Torres, que até o último acorde de banda deste ano cumprirá uma maratona em blocos vestido a caráter, em vôos solos como o original.” (noticiado no jornal O Globo, de 23/01/08, Rio,coluna “No embalo”, p. 18.)
Na verdade, o carnaval me fez pensar, de maneira mais forte, na canção com o mesmo título, música de Marcos Valle e letra de Ruy Guerra, sobre a qual já havia afirmado, num post de 2005, ter sido uma espécie de hino de minha juventude.
Só tomei conhecimento da existência do personagem depois de ter escutado a canção em 1968 e, até em função de ter-me identificado com a letra, vesti, interiormente, a fantasia que a música me sugeriu, menos no carnaval, pois, ao contrário do personagem, fui daqueles foliões que saía com uma turma numerosa, nos carnavais de Salvador, na década de 60.
Gosto, na música, da alternância entre os tons menor e maior, como a pontear o estado de espírito que cada estrofe apresenta, na busca, talvez, de um equilíbrio interior impossível, na tentativa que nós próprios tantas vezes fazemos de sermos muito quando, na realidade, sabemos que nem somos o que podemos.
Carnaval faz emergir a dialética do real e do imaginário, a negação do certo pelo etéreo, da supremacia dos sentidos sobre a razão mas, por outro lado, amplia a percepção da fragilidade desse lado racional, tão facilmente (ou etilicamente) contido, por três ou quatro dias.
Domingo de carnaval, noite, após um dia de chuva, que cai, de modo intermitente desde o dia anterior, muito o que pensar, relembrar, reviver, e, naturalmente, compartilhar.
No Bloco Do Eu Sozinho
(Marcos Valle & Ruy Guerra)
No bloco do eu sozinho
Sou faz tudo e não sou nada
Sou o samba e a folia de fantasia cansada
Sou o novo e o antigo
Sou o surdo e o entrudo
Visto farrapo e o veludo
Faço um breque, depois sigo
No bloco do eu sozinho
Sozinho sou cordão
Sou a esquina do caminho
Sou rei Momo e Damião
Sou o enredo da parada
Sou cachaça e sou tristeza
Pulando junto e sozinho
Faço da rua uma mesa
No bloco do eu sozinho
Sou São Jorge que passeia
Sou alguém que esquece a lua
Em favor de uma candeia
Sozinho sou a cidade
Sou a multidão deserta
Pé na dança e mão aberta
Em busca da vida cheia
No bloco do eu sozinho
Sou a seda do estandarte
Sou a ginga da baiana
Sou a calça de zuarte
Sou quem briga e deixa disso
Sou Oropa e Aruanda
Sou alegria de Rosa
que nunca brinca em serviço
No bloco do eu sozinho
Sou a sorte e o azar
E o folião derradeiro
Que abre os braços pra brincar
Sou passista e sou pandeiro
E nas pedras da calçada
Sou a lembrança mais fria
De um mundo sem madrugada
No bloco do eu sozinho
De toda e qualquer maneira
Na bateria calada
Nas cinzas de quarta-feira
Nos confetes da calçada
Nas mãos vazias de Rosa
Sou alegria teimosa
Sambando pra não chorar