Um Barco

quinta-feira, 22 julho 2004

Velho Forte

 

Nem verdade tristonha, nem mentira risonha, o carteiro, que nem meu nome gritou, deixou um envelope pardo que, pelo tamanho, sabia conter uma revista. Abri, sem ver o remetente, e vi você assim, velho forte, imponente, na capa, abrindo as comportas de meu passado.
forte
forte2 E lá estava você, em várias páginas, em vários ângulos, um dos quais, como esse, nunca visto por meus olhos de criança e adolescente. E lá estava eu, anos e anos atrás, invisível na foto, mas presente em cada lado, em cada parede inclinada, por onde deslizava sobre uma palha de coqueiro.
Em seu redor, as brincadeiras da infância e a contemplação adolescente do mar que você até hoje vigia, aquele mar ora azul, ora verde, escravo do clima, das algas e das águas-vivas.
imagens/forte3 
forte5  Velho forte das férias de minha infância e juventude. Perto de você me senti homem, ao receber o primeiro beijo, da primeira namorada. Alguns anos depois, algumas namoradas depois, bem a seu lado, numa noite, me senti humanamente falível, com a primeira bebedeira, por término de namoro (sim, levei um fora). 
Quando a noite descia, lenta, sua silhueta emoldurada pelo laranja-vermelho-negro do mergulhar do sol nos dizia que era hora de voltar para casa, após um dia cheio de banhos de mar, jogos de bola, brincadeiras nas tardes mornas. E, muitas vezes, voltávamos para você à noite, velho forte, mar prateado pela lua, à beira do qual, em rodas de violão, tantas vezes cantava com os amigos amores ainda não vividos.
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Não morei perto de você, velho forte, a não ser nos meses de férias, mas me sinto agora, vendo as fotos da revista inesperada, bem próximo de novo às suas paredes,  bem junto de meu passado, bem longe do meu presente que, de uma forma ou de outra, foi influenciado por você. Mas sinto, e bem forte, uma enorme paz, ao me lembrar de tudo isso.
Filed under: Digressões — Um Barco @ 9:09 pm

terça-feira, 20 julho 2004

Te Rever – Eduardo Gudin

Gostar de uma música, não interessa o estilo, envolve aspectos de ordem estética, conjuntural ou afetiva, só para citar alguns. A mesma música que nos enleva pode evocar, em outro ouvinte, desde um imenso desprezo até uma total indiferença, afinal de contas, gosto é gosto (ou desgosto, depende).

Na dinâmica da vida, por vezes ouvimos uma música que nos arrebata, para mais tarde a descartarmos em detrimento de outra, a arrebatadora da hora, meio assim como as paixões.

E a música descartada vai para algum disco rígido da memória, aguardando, quem sabe, algum acesso futuro (ou não). Esse acesso é intermitente e traz consigo as lembranças que a música desperta.

Anos se passam e “por acaso ou por um caso”, por alguma emoção fugidia é a lembrança que desperta a música.

Morei em São Paulo nos anos de 81 e 82. Na verdade, morei em Osasco, cidade satélite (sem ofensa, por favor) de Sampa. Vinte e dois anos atrás, era o mesmo que morar em um bairro distante, porém de fácil e rápido acesso, afinal não havia os engarrafamentos monstruosos e cotidianos nas marginais tão comuns nos dias de hoje.

Após algumas voltas, eis-me de volta no Rio em 1985. Estudos, noites em claro, ouvindo FM. E toca “Te Rever”, com Eduardo Gudin. Adorei a música e, imediatamente, rememorei meus tempos de Sampa. E a música se foi e outras músicas vieram e eu fui tempo e vida a fora.

Ontem, após meses de procura, entre sebos e programas de compartilhamento (Soulseek, E-mule, Kazaa), finalmente consegui a música. E me revi com a mesma emoção de 1995, pensando em Sampa, mesmo que a letra não me dissesse nada, em termos de experiência vivida.

Ao entrar na sala de chat, toquei-a para minha amiga “Unidades!” e disse a ela que faria um post, para compartilhar com outras pessoas não uma música apenas, mas a emoção de tê-la ouvido, após tantos anos.

terever.mp3

Te Rever
(Costa Netto e Eduardo Gudin)

Te rever
Por quantos dias ainda vou suportar
Essa ironia de comemorar
O que restou de nós

Te rever
Nos luminosos que não cansam de piscar
E presunçosos querem ofuscar
O amanhecer

E nosso olhar
Cruza a avenida e pára em qualquer farol
Já tão despidas manhãs vão atrás do sol
Tentando aquecer

Te rever
Em cada aula de esquina que a vida dá
Nossa São Paulo ensina a duvidar
Do que restou de nós

Te rever
Nessa garoa que soube nos conduzir
E a gente a toa sem ter onde ir
Foi se envolver

Foi se iludir
Perder de vista tão cedo o entardecer
Pela Paulista o medo de olhar e ver
O amor anoitecer.

Filed under: Música — Um Barco @ 11:45 pm

quinta-feira, 8 julho 2004

Simplesmente…

Inevitável, este post! E eu disse a ela. Só não imaginava que seria tão cedo. Ela me chama de “Dezenas!”, eu a chamo “Unidades!” e nem me lembro mais porque nos apelidamos assim, já que não são nossos nicks habituais, na sala de chat que freqüentamos.

Ela me falou que sua simplicidade nem sempre era entendida (ou algo assim). Eu respondi que a simplicidade era um atributo externo, não uma condição intrínseca (ou algo assim).

Seguiu-se um breve colóquio sobre simplicidade. Perguntei-lhe se conhecia a música “Simplesmente”, disse-me que não se lembrava. E colei para ela ouvir, na sala de chat. Durante a execução confessou-me: “debulhei-me aqui” (ou algo assim). Disse-lhe que ainda escreveria um post sobre o tema.

Agradeceu-me pela música e a dinâmica difusa e fragmentada da sala de chat nos separou, conduzindo-nos a outras conversas, outras pessoas.

Ao longo do dia, o tema me perseguiu. Tardinha, em casa, micro conectado, leitura de e-mails e blogs, inspiração (ou algo assim).

Tudo é tão simples e nada é tão simples. Será que é tão simples assim, nos dias de hoje, “plantar e colher com a mão a pimenta e o sal”? Será tão complexo para um de nós, internautas, ler coisas do mundo inteiro?

Tão fácil e simples (para uns) imaginar a paz como um “…barquinho pelo mar, que desliza sem parar…”. Inimaginável e complexo (para outros) sentir-se em paz (ou algo assim) numa rave, dançando techno com a pessoa amada.

Uma coisa é certa (pelo menos, para mim), mergulhar é preciso. Sentir-se raso(a) é não ter uma profundidade interior que justifique um salto para dentro de si mesmo. E, nesse caso, tudo é simples. Complexo é saber-se abissal, saltar e mergulhar em {m}ág{o}uas profundas.
Nada (tudo) simples, tudo (nada) complexo. Divagação (ou algo assim)…

E deixo, abaixo, a canção que colei para “Unidades!”, letra e música, para que, simplesmente, mergulhem…ou não.

simplesmente.mp3

Simplesmente
(Paulinho Nogueira)

Quantas vezes eu já fracassei
Quantos bons momentos desprezei
Por pensar demais, por ouvir demais
Por não saber olhar a vida simplesmente

Dentro desse louco turbilhão
Cada um querendo ser melhor
É muito melhor se deixar ficar
Em tudo que você sentir simplesmente

E logo de manhã
Olhar bem dentro de você
Nas coisas como você vê
Duvidar então do que querem fazer você olhar
Fazer você ouvir, fazer você pensar
E chegando a noite devagar
Descontrair sua razão
Soltar de leve o coração
Procurar alguém o seu bem verdadeiro tão somente
Que vai saber simplesmente
O que é bom pra você

Filed under: Música — Um Barco @ 6:22 pm

domingo, 4 julho 2004

Eu canto o Corpo elétrico

Um comentário de Loba ao meu post “Olhar…substantivo…”, uma visita ao seu blog, a leitura do post “Invasão do querer”, motivação para um novo post, cujo título poderia ser (e tem tudo a ver com) “Vontade e Desejo”. No comentário, ela se define como loba uivando, em sexta-feira de lua cheia e em “Invasão do querer” fala da vontade de amar, vontade de sexo.

O título deste post, do poeta americano Walt Whitman, é bastante conhecido (pelo menos em inglês – I sing the Body electric) e título de um dos poemas de sua obra “Leaves of Grass”. Já foi conto de Ray Bradbury e, posteriormente, episódio da série de TV “Além da Imaginação” (The Twilight Zone) em 1962, título de discos do Weather Report (com Wayne Shorter e Jaco Pastorius) e do percussionista brasileiro Dom Um Romão, além de ser o título da música tocada e dançada pelos alunos, em sua formatura, no filme “Fama”, o que mostra a força da frase no imaginário americano.

No poema, Walt Whitman glorifica o Corpo, não apenas como objeto sexual, porém em toda sua beleza e funcionalidade.

E é o corpo elétrico que, para mim, define o desejo e me leva a essa digressão sobre vontade e desejo.

Vontade é querer, desejo é necessitar; vontade é predisposição, desejo é iminência; vontade é pensar, desejo é sentir; vontade está no interior, desejo aflora na pele; vontade independe da presença, desejo emerge na proximidade; vontade é contida, desejo é abortado; vontade é o que Loba descreve em “Invasão do querer”, desejo é o que Gonzaguinha explicita em “Infinito Desejo”.

Longe de mim esgotar o tema. Apenas um breve solilóquio dedicado a Loba, muito mais silencioso que seu uivo.

Filed under: Digressões — Um Barco @ 10:13 pm

sexta-feira, 2 julho 2004

Olhar… substantivo…

Se os olhos são, como dizem, o espelho da alma, o olhar é o que vemos refletido. A força das palavras tecladas numa comunicação virtual é pequena, mínima, comparada com a carga de emoção que um olhar transporta.

Neste post traduzo, por versos alheios, parte dessa emoção e, de outra forma, a emoção despertada pela leitura do olhar da(o) outra(o).

Apesar do título do post ser fiel à natureza da palavra “olhar”, como substantivo, nada mais adjetivo que um olhar, que qualifica a comunicação, traduzindo o sentimento, a vontade, o desejo, a emoção, instantaneamente, para ser lido por quem tem sensibilidade à flor dos olhos.

E eu inicio com a música responsável por esse post, já que foi por ouví-la que resolvi publicar essa mensagem.

seuolhar.mp3

Seu Olhar
(Gilberto Gil)

Há no seu olhar algo que me ilude
Como o cintilar da bola de gude
Parece conter as nuvens do céu
As ondas brancas do mar
Astro em miniatura, micro-estrutura estelar

Há no seu olhar algo surpreendente
Como o viajar da estrela cadente
Sempre faz tremer sempre faz pensar
Nos abismos da ilusão
Quando, como e onde vai parar meu coração?

Há no seu olhar algo de saudade
De um tempo ou lugar na eternidade
Eu quisera ter tantos anos-luz
Quantos fosse precisar
Pra cruzar o túnel do tempo do seu olhar

“…que passou por um sonho meu sem dizer adeus e fez dos olhos meus um olhar mais sem fim…”
“…que vontade de merecer um cantinho do seu olhar, mas tenho medo…”
“…eu vou ter que esquecer seu olhar na hora do adeus…”
“…essa canção quer você todo tempo que eu perdi, todo lance que rolar, cada momento e em qualquer lugar ou enquanto acender este brilho em teu olhar…”
“…este seu olhar quando encontra o meu fala de umas coisas que eu não posso acreditar…”
“…não deixe de cruzar o seu olhar com o meu, eu vou jogar meu corpo em cima do seu…”
“…e no teu olhar, tonto de emoção, com sofreguidão mil venturas previ…”
“…eu, você, nós dois, aqui neste terraço à beira-mar, o sol já vai caindo e o seu olhar parece acompanhar a cor do mar…”
“…teu olhar de tela sempre perguntando o que pensava e no filme eu também acreditava em me salvar no final…”
“…oh, pedaço de mim, oh, metade afastada de mim, leva o teu olhar, que a saudade é o pior tormento…”
“…ai que bom que isso é meu Deus, que frio que me dá o encontro desse olhar…”
“…tenho um mundo pra te dar e um brilho no olhar, tão sincero, vem viver comigo…”
“…quando olhaste bem nos olhos meus e o teu olhar era de adeus…”
“…brilha no céu de novo uma estrela soltando a luz que reluz seu olhar…”
“…em cada luz de mercúrio vejo a luz do seu olhar…”
“…um filhote de leão, raio da manhã arrastando o meu olhar como um imã…”
“…é na soma do seu olhar que eu vou me conhecer inteiro…”
“…foi assim, como ver o mar, a primeira vez que os meus olhos se viram no seu olhar…quando eu mergulhei fundo nesse olhar fui dono do mar azul, de todo azul do mar…”
“…um olhar me atira à cama, um beijo me faz amar…”
“…seu olhar em festa se fez feliz lembrando a seresta que um dia eu fiz…”
“…como um dia numa festa realçavas a manhã, luz de sol, janela aberta, veste em verde o teu olhar…”
“…e com o olhar esquecido no encontro de céu e mar, bem devagar ir sentindo a Terra toda rodar…”
“…teu coração, praia distante em meu perdido olhar…”
“…junto a mim morava a minha amada com olhos claros como o dia, lá o meu olhar vivia de sonho e fantasia e a dona dos olhos nem via…”
“…a todo amor se entregar sem medo de se perder, cada olhar é um segredo que sorri pra você…”

E haveria ainda tanto “olhar” para mostrar que esse blog seria um espaço pequeno demais. Deixo a cargo dos (poucos e heróicos) leitores outras contribuições. Quem sabe, haverá outro post em continuação a esse?

Filed under: Música — Um Barco @ 6:59 pm
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