Em primeiro lugar, tem de ser um domingo de manhã. Além disso, tem de ser num outono ou inverno, temperatura amena o suficiente para conforto e insuficiente para uma praia ou piscina. Algo em torno de 10 da matina, quando o sono da noite anterior já se diluiu no embalo do dia e ainda cedo para qualquer programa.
Pães dormidos, daqueles comprados meio na pressa, em supermercados, que, até talvez por falta do bromatos e sei lá o que mais, não possuem a textura e sabor característicos dos pães de padaria. Meio como as decisões tomadas pela emoção, tão intensas quanto artificiais e pouco duradouras no prazer. Mas são deliciosas, enquanto estão quentes, na boca e no coração.
Claro, aquele estado de espírito manso, sem pensamentos na semana que teima em iniciar numa segunda-feira. Cuca leve, cabeça fresca ou qualquer outra expressão que denote um estado que poderia ser chamado de zen. E, óbvio (pelo menos em meu caso), músicas de fundo, como moldura para a dissociação entre as mãos que modelam e o cérebro que começa a divagar. Músicas como essa, que ouvem e que me motivou a recolocar Um Barco em seu mar.
A faca no pão, fatiando, pensando nas fatias em que os momentos da vida se transformam, parecidos, mas separados, num todo discreto, semelhante e diferente. E vamos cortando e pensando e ouvindo e sentindo e elaborando.
Um, dois, três pãezinhos fatiados. Pedaços quase regulares, mas ainda vazios. Momentos de espera.
Passar manteiga em cada pedaço, em ambos os lados, devagar, com cuidado, nem muito nem pouco, o necessário, como se fosse possível quantificar isso, assim como não é possível quantificar o que se quer, o que se deve, o que se pode. Apenas vamos passando a manteiga, instintivamente, apenas vamos agindo, enquanto a vida vai pincelando momentos em nós, vindos de outros.
Agora o parmesão ralado, não esfarinhado como pó, lembranças pulverizadas, nem em pedaços grandes demais para o tamanho da torrada, ocasiões perdidas ou desperdiçadas, medos.
O despejar lento do pacote em cada torrada, tempo pingado sobre nossa vontade. Em algumas, o parmesão cai muito, espalhado-se por fora, perdas.
O espalhar, com o dedo, misturando o parmesão com a manteiga, homogeneizando, afinal, o tempo faz isso conosco.
Levar ao forno já aquecido, como o coração, face a uma nova paixão. Esperar até que a manteiga derreta, da mesma forma que as mágoas, que se espalham tanto que nem as percebemos como tal, acabam por se fundir em nosso viver, em nossas experiências.
Retirar, quando o dourado for belo demais e a consistência crocante o suficiente, para que nem se pareça, o gosto, com o que já não agradava no pão dormido. Renovar, reconstruir.
Saborear, fechando os olhos, como num beijo, sentindo aquele orgulho simples de ter feito, de ter pensado, de ter sentido, sabendo que, como tudo na vida, não vai durar, como a (linda) juventude que também passou, mas foi, aconteceu, dourou, mesmo quando pareceu, às vezes, incompreensível, como certos trechos da letra. Ficou, entretanto a harmonia do todo, das palavras, dos momentos, das torradas douradas e, agora, saborosas, como a vida ainda o é.
lindajuventude.mp3Linda Juventude
(Flávio Venturini & Márcio Borges)
Zabelê Zumbi, Besouro
Vespa fabricando mel
Guardo teu tesouro
Jóia marrom
Raça como nossa cor
Nossa linda juventude
Página de um livro bom
Canta que te quero
Cais e calor
Claro como o sol raiou
Claro como o sol raiou
Maravilha juventude
Pobre de mim, pobres de nós
Via láctea
Brilha por nós
Vidas pequenas da esquina
Fado, sina, lei, tesouro
Canta que te quero bem
Brilha que te quero
Luz, andaluz
Massa como o nosso amor
Maravilha juventude
Tudo de mim, tudo de nós
Via láctea
Brilha por nós
Vidas bonitas da esquina
e você me faz sonhar com uma manhã de domingo….que texto delicioso!!!!!!
Comentário by crissmorena — terça-feira, 26 junho 2007 @ 11:23 pm