Sátira, deboche, duplo sentido, malícia, tudo isso está entranhado em nossa tradição musical, tanto quanto a riqueza melódica e a sofisticação harmônica.
Hoje em dia, com o “politicamente correto” e seus defensores radicais pairando, muito do que já foi escrito e cantado não teria mais espaço ou, numa condição mais extrema, seriam fruto até de ações judiciais.
Exemplos? Será que os versos de “Nega do cabelo duro”, “…nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia?…”, de David Nasser e Rubens Soares, lançado no carnaval de 1942 e “…Êta nega tu é feia/Que parece macaquinha/Olhei pra ela e disse/Vai já pra cozinha/Dei um murro nela/E joguei ela dentro da pia…”, em “Minha nega na janela”, de Germano Mathias e Doca, com essa carga imensa de racismo e violência contra a mulher (segundo a visão do politicamente correto), teriam boa aceitação, hoje?
E que dizer de “..olha a cabeleira de Zezé, será que ele é, será que ele é?…”, de João Roberto Kelly e Roberto Faissal? Homofobia clara e explícita, para os padrões atuais?
Sérgio Porto (11/01/1923 – 29/09/1968), mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta, foi cronista, escritor, radialista e compositor. Seu humor ferino e mordaz deixou marcas, principalmente pela série “Festival de Besteiras que Assola o País” ou “FEBEAPÁ”, onde atacava, principalmente os políticos (por exemplo, ele usava o termo “depufede”, para deputado federal). Há quem leia traços de machismo e racismo em seus escritos e até alguma discriminação contra o homossexualismo.
Compôs poucas músicas e a mais conhecida é, sem dúvida, “Samba do Crioulo Doido”, gravada pelo Quarteto em Cy no álbum “Em Cy Maior”, de 1968.
Em 2006, houve uma tentativa de renascimento do gênero musical marchinha, inclusive e principalmente no carnaval de 2007, com um festival e até um musical só de marchas, onde parte dos versos acima foram cantados.
Escolhi, para este post a marchinha, “Nabucodonosor”, também gravada pelo Quarteto em Cy. Ela satirizava um fenômeno da época, os desfiles de fantasia, em particular os dos bailes do Municipal e seus personagens cobertos de plumas, paetês e muita vaidade.
No site O Caixote há mais informações sobre Stanislaw Ponte Preta e sobre essa canção, como por exemplo, “- O travesti Rogéria era a Roberta Close do gênero, nos anos 60. Em homenagem a ela, e à turma do terceiro sexo, “já quase passando pra segundo”, Stanislaw acabou fazendo a Marcha da Bicha Louca para ela…”.
A censura, na época, não permitiu o título original, mudando para Nabucodonosor. A interpretação das baianas do Quarteto em Cy valoriza, e muito, a letra, com entonações características do personagem.
A canção, muito difícil de encontrar, tem todos os elementos típicos de seu gênero, com introdução na base do “la-ra-ra” e, pelo que pude pesquisar, foi gravada postumamente em 1973, num “compacto” juntamente com “Baioque”, não tendo feito parte de nenhum álbum do quarteto.
Nabucodonosor
(Sergio Porto – “Stanislaw Ponte Preta”)
Nunca mais quero sair fantasiado
Nunca mais quero brincar no carnaval
Nunca mais, ai, nunca mais serei vaiado
Naqueles bailes do Municipal
Foi no ano passado, eu me fantasiei, imaginem vocês
Fui pra lá carregado, todo enfeitado, com mil paetês
Com miçangas e vidrilhos, apliques, lantejoulas
Bordados eu tinha até mesmo nas minhas ceroulas
Quantas noites tive que ficar acordado
Quantas noites eu cheguei mesmo a passar mal
Quantas noites eu caprichei nos meus babados
Pra quase ir em cana no final
Começou o desfile, a fofoca comia em pleno salão
Sonho de Messalina, não sabe de quem, levou um bofetão
Esplendor Renascentista foi desclassificado
Aí deu um pulo pra cima e caiu desmaiado
Foi então que desisti de desfilar
Foi então que abandonei a passarela
Foi então que começaram a me estranhar
E o povo já gritava prende ela
E o povo já gritava prende ela
Terminou o desfile eu só não chorei porque não sou mulher
E mesmo que fosse, eu nunca seria como uma qualquer
Fui pra minha casa curtindo a minha dor
Rasgado e amassado de Nabucodonosor