Um Barco

sexta-feira, 13 abril 2007

Nabucodonosor – Stanislaw Ponte Preta

Sátira, deboche, duplo sentido, malícia, tudo isso está entranhado em nossa tradição musical, tanto quanto a riqueza melódica e a sofisticação harmônica.

Hoje em dia, com o “politicamente correto” e seus defensores radicais pairando, muito do que já foi escrito e cantado não teria mais espaço ou, numa condição mais extrema, seriam fruto até de ações judiciais.

Exemplos? Será que os versos de “Nega do cabelo duro”, “…nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia?…”, de David Nasser e Rubens Soares, lançado no carnaval de 1942 e “…Êta nega tu é feia/Que parece macaquinha/Olhei pra ela e disse/Vai já pra cozinha/Dei um murro nela/E joguei ela dentro da pia…”, em “Minha nega na janela”, de Germano Mathias e Doca, com essa carga imensa de racismo e violência contra a mulher (segundo a visão do politicamente correto), teriam boa aceitação, hoje?

E que dizer de “..olha a cabeleira de Zezé, será que ele é, será que ele é?…”, de João Roberto Kelly e Roberto Faissal? Homofobia clara e explícita, para os padrões atuais?

Sérgio Porto (11/01/1923 – 29/09/1968), mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta, foi cronista, escritor, radialista e compositor. Seu humor ferino e mordaz deixou marcas, principalmente pela série “Festival de Besteiras que Assola o País” ou “FEBEAPÁ”, onde atacava, principalmente os políticos (por exemplo, ele usava o termo “depufede”, para deputado federal). Há quem leia traços de machismo e racismo em seus escritos e até alguma discriminação contra o homossexualismo.

Compôs poucas músicas e a mais conhecida é, sem dúvida, “Samba do Crioulo Doido”, gravada pelo Quarteto em Cy no álbum “Em Cy Maior”, de 1968.

Em 2006, houve uma tentativa de renascimento do gênero musical marchinha, inclusive e principalmente no carnaval de 2007, com um festival e até um musical só de marchas, onde parte dos versos acima foram cantados.

Escolhi, para este post a marchinha, “Nabucodonosor”, também gravada pelo Quarteto em Cy. Ela satirizava um fenômeno da época, os desfiles de fantasia, em particular os dos bailes do Municipal e seus personagens cobertos de plumas, paetês e muita vaidade.

No site O Caixote há mais informações sobre Stanislaw Ponte Preta e sobre essa canção, como por exemplo, “- O travesti Rogéria era a Roberta Close do gênero, nos anos 60. Em homenagem a ela, e à turma do terceiro sexo, “já quase passando pra segundo”, Stanislaw acabou fazendo a Marcha da Bicha Louca para ela…”.

A censura, na época, não permitiu o título original, mudando para Nabucodonosor. A interpretação das baianas do Quarteto em Cy valoriza, e muito, a letra, com entonações características do personagem.

A canção, muito difícil de encontrar, tem todos os elementos típicos de seu gênero, com introdução na base do “la-ra-ra” e, pelo que pude pesquisar, foi gravada postumamente em 1973, num “compacto” juntamente com “Baioque”, não tendo feito parte de nenhum álbum do quarteto.

Nabucodonosor
(Sergio Porto – “Stanislaw Ponte Preta”)

nabucodonosor.mp3

Nunca mais quero sair fantasiado
Nunca mais quero brincar no carnaval
Nunca mais, ai, nunca mais serei vaiado
Naqueles bailes do Municipal

Foi no ano passado, eu me fantasiei, imaginem vocês
Fui pra lá carregado, todo enfeitado, com mil paetês
Com miçangas e vidrilhos, apliques, lantejoulas
Bordados eu tinha até mesmo nas minhas ceroulas

Quantas noites tive que ficar acordado
Quantas noites eu cheguei mesmo a passar mal
Quantas noites eu caprichei nos meus babados
Pra quase ir em cana no final

Começou o desfile, a fofoca comia em pleno salão
Sonho de Messalina, não sabe de quem, levou um bofetão
Esplendor Renascentista foi desclassificado
Aí deu um pulo pra cima e caiu desmaiado

Foi então que desisti de desfilar
Foi então que abandonei a passarela
Foi então que começaram a me estranhar
E o povo já gritava prende ela
E o povo já gritava prende ela

Terminou o desfile eu só não chorei porque não sou mulher
E mesmo que fosse, eu nunca seria como uma qualquer
Fui pra minha casa curtindo a minha dor
Rasgado e amassado de Nabucodonosor

Filed under: Música — Um Barco @ 4:18 pm

quinta-feira, 5 abril 2007

Ponto de Fuga

Lá estava eu, meio de tarde, início de outono ainda com jeito de verão, quente, caminhando com outras pessoas, paisagem cinza mesclada de verde, ou vice-versa, dependendo do ângulo, da visão, do ânimo.

Poucos pássaros esvoaçavam em torno de nós, silenciosos como não deveriam ser.

O suor que o sol extraía do corpo, quando exposto, era combatido e evaporado por um vento persistente e refrescante, nas poucas sombras que cobriam nosso breve percurso.

Uma sensação fria, desalento, abandono, tudo o mais contrariava o calor que teimava em perturbar qualquer tentativa de concentração, que afastava a vontade de lembrar, de reviver, de voltar a ser.

Lá estava eu, mesmo sem querer, obrigado por mim mesmo àquilo que, naquele momento, me atingia, me afetava, a mim e às pessoas silenciosas, naquele caminhar.

E eu observava em cada olhar um infinito próprio. Em muitos, a tristeza explícita, em outros, o vazio do não querer acreditar, em poucos a seriedade dos que entendem que o inexorável é absoluto.

Era tudo meio irreal, como ocorre nas horas em que a vontade de não estar suplanta a percepção objetiva. Era o humano face a face com eterno.

Chegamos, eu e as outras pessoas, ao destino final da caminhada para escutar as palavras tantas vezes ouvidas, em formas diversas, mas com o mesmo sentido.

E ouvimos, olhos fixos num ponto à frente mas que, na verdade, enxergavam muito além, muito mais que o horizonte cinza e artificial que nos cercava.

E respondemos, mecânica e reflexivamente, sem ao menos procurar entender, analisar, elaborar.

E assim fiquei, até o fim, olhos parados, mente vazia, coração trancado, como que observando uma estrada reta à minha frente, laterais se estreitando até que, lá longe, se transformavam num ponto de fuga que, no momento, simbolizava o futuro, conforme percebíamos, estreito, finito.

Naquele momento, nem sei bem porque, me lembrei de Olívia Byington cantando, cristalinamente, a canção abaixo.

E o momento passou, deixando a realidade invadir, mais uma vez, os sentidos até então amortecidos.

E, contudo, a vida continuou, apesar do vazio aparente, apesar de nada.

Água e Vinho
(Egberto Gismonti & Geraldo Carneiro)

agua_e_vinho.mp3

Todos os dias passeava secamente na soleira do quintal
A hora morta, a pedra morta, a agonia e as laranjas do quintal
A vida ia entre o muro e as paredes de silêncio
E os cães que vigiavam o seu sono não dormiam
Viam sombras no ar, viam sombras no jardim

A lua morta, a noite morta, ventania e o rosário sobre o chão
E um incêndio amarelo e provisório consumia o coração
E comecou a procurar pelas fogueiras, lentamente
O seu coração já não temia as chamas do inferno
E das trevas sem fim, haveria de chegar o amor

Filed under: Prosa — Um Barco @ 10:00 pm

sábado, 31 março 2007

O Trem – Gonzaguinha

Esse artigo (ou post, como queiram) inaugura uma série dedicada à canção em si, ou seja, em vez da música servir de pano de fundo a algo que eu escrevi, ela é a razão de ser do artigo, embora, de algum modo, eu apareça como cenário, na medida em que a canção me tocou, quando a ouvi e, por isso, compartilho letra e música com que lê este blog.

Considerando a infinidade de sites e blogs sobre músicas, procurarei trazer em cada post com o rótulo “Música”, uma canção pouco conhecida ou mesmo difícil de ser encontrada.

A canção “O Trem”, de Gonzaguinha dos primeiros tempos, foi lançada em 1969, no II Festival Universitário da Música Brasileira, promoção da TV Tupi e da Secretaria de Educação da Guanabara e foi a vencedora do festival. Só para mostrar a importância dos festivais universitários, na época, o I Festival Universitário foi vencido por “Helena, Helena, Helena”.

Entre os concorrentes da segunda versão, alguns nomes, então desconhecidos, como Aldir Blanc (Escola de Medicina e Cirurgia), Ruy Maurity (Psicologia da PUC), César Costa Filho (Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas), Sueli Costa (Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora) e Luiz Gonzaga Nascimento Jr. (Economia da faculdade Cândido Mendes), entre outros. Tudo isso que escrevi, retirei do “LP” (que possuo, gravado em mono) do festival , lançado em 1969 pelo selo Companhia Brasileira de Discos, da PHILIPS.

Em se falando de festivais, o livro mais completo, e ainda em catálogo, é “A Era dos Festivais – Uma Parábola”, de Zuza Homem de Mello que, infelizmente, só cita o I Festival Universitário não trazendo nenhuma informação sobre “O Trem”.

A canção é amarga, em sua mensagem, aliás como eram as da primeira fase de Gonzaguinha. O arranjo inicial, gravado ao vivo no festival, era seco, fazendo jus à letra, diferente deste que está no post e que faz parte do album “Gonzaguinha da Vida”, de 1979. O interessante é que, nesse album, a canção tem o título ” Você se lembra daquela nega maluca que desfilou nua pelas ruas de Madureira? (O Trem)”, talvez para evitar mais um confronto com a censura, coisa muito comum com as canções dele, na época (vide o refrão “…você merece, você merece…”, de “Comportamento Geral, entre outras).

(Re)abrindo uma série de posts sobre músicas e músicos, eis “O Trem”, que deixou marcas muito fortes em mim, então um adolescente de 19 anos, com aqueles grilos existenciais típicos de um jovem da década de 60.

O Trem
(Gonzaguinha)

trem.mp3

Uma prece a quem passa, rosto ereto
Passo certo, olhar reto pela vida, amem!
Uma prece, uma graça, ao dinheiro recebido,
Companheiro, lado amigo, amem!
Uma prece, um louvor ao esperto enganador
Pela espreita e a colheita, amem!

Eia! E vai o trem num sobe serra, desce serra, nessa terra
Vai carregado de esperança, amor, verdade e outros “ades”
Tantos males, pra onde vai? Quem quer saber?

Sem memória e sem destino
Eu ergo o braço cego ao sol
De um mundo meu, meu só
Me reflito, o pé descalço, a mão na lixa
A roupa rota, o sujo, o pó, o pó, o pó.

Morte ao gesto de uma fome – é mentira!
Morte ao grito da injustiça – é mentira!
Viva em vera a igualdade, o valor.

Eia! E vai o trem…

Sob as luzes da cidade a cor alegre,
A festa, a vida ri sem fim
Nem meu dedo esticado traz um pouco o gosto
O doce e o mel pra mim, pra mim.

Viva o tempo sorridente que me abraça!
Viva o copo de aguardente que me abraça!
Morte ao trabalhador sem valor!

Eia! E vai o trem…

Uma prece, um pedido, um desejo concedido
A você na omissão, amem!
Uma prece, uma graça, pelo pranto sem espanto
E a saudade consentida, amem!
Uma prece um louvor, ao adeus, mão contra o vento
Na partida deste trem, amem!

Eia! E vai o trem…

PS: Deixo o link a seguir,
http://umbarco.blog.br/navegar/musicas/trem_original.mp3
para os que quiserem ouvir a versão ao vivo, gravada do II Festival Universitário de 1969.

Filed under: Música — Um Barco @ 11:20 am

quarta-feira, 28 março 2007

Poemias

Em abril de 2004 Um Barco foi ao mar. Alguns posts e meses depois, um site literário chamado “Poemias” enviou um convite para que lá eu publicasse poemas de minha autoria.

Isso ocorreu em setembro do mesmo ano e pouco durou. Encaminhei, em datas diferentes, dois pequenos poemas que foram publicados, mas se apagaram como Poemias também se apagou, com o fechamento do site. Ficaram adormecidos.

Relutei em republicá-los, mas faço-o agora, em silêncio.

O Muro

O muro está ali, eu o sinto.
E não vejo como ou porque
Deveria escalá-lo,
Já que nem é tão alto assim.
Mas é um muro, uma parede,
E eu preciso!
Nem quero saber porque ou como,
Mas preciso, sinto isso!
Saber do outro lado
Ainda que seja só para ver
A mim mesmo, tentando me encontrar.

 

O Medo da Morte

Nem é da morte o medo,
É o medo de mais não ser.
É ser, e tão apenas.
Se apenas viver, mais nada
É nada mais que um desejo,
É um desejo puro, forte,
Eu, forte mesmo não sendo,
É sendo fraco que irei.
É, irei à luta e verei
Morrer o medo da morte.

Filed under: Poesia — Um Barco @ 12:17 am

terça-feira, 20 março 2007

Fênix

leclochard.mp3

Reconstruir-me,
De cada pedaço de mim
Ainda que uma cópia.

Regenerar-me
A cada golpe recebido,
Como a cabeça da hidra.

Reencontrar-me
Com o mesmo sol,
Como se em outro planeta.

Pensar-me pleno
De tudo que teria,
Se houvesse a chance.

Perder-me do triste,
Como num labirinto
Para chegar ao riso.

Reescrever-me
Com as mesmas palavras,
Em muitas formas.

Repintar-me
De muitas cores,
Na mesma imagem de mim.

Renascer, límpido,
Das cinzas frias
De cada manhã.

Reacender o fogo
De toda emoção,
A cada segundo.

Saber-me novo,
Sentir-me novo,
Mesmo não sendo.

Imaginar-me eterno,
Nas palavras gravadas
Nos olhos que me lêem.

Filed under: Poesia — Um Barco @ 9:47 pm
« Newer PostsOlder Posts »

Gerado com WordPress