Sexta, 10/03/2006

Um Traço de Circe

Ao escrever lótus, pensei em Circe, na medida em que tento transcrever, em meu estilo difuso característico, situações, contextos, processos, enfim, pedaços de meu tempo, espaço interior e vizinhança, personagens inclusos, reais, imaginários ou oníricos, afinal, viver não é só viver, mas imaginar-se vivendo ou viver imaginando, vivendo de sonhos, mesmo que por apenas alguns momentos.

Circe era uma feiticeira, na verdade um deusa, que atraía os viajantes incautos para seu palácio e os transformava em animais. Ulisses escapou, graças ao deus Hermes, que o presenteou com uma planta que, ao ser comida, tornava inócua a poção de Circe. Dessa forma, Circe se rendeu a Ulisses, a ponto de ter vivido com ele um certo tempo, chegando a ter três filhos com ele. Posteriormente, aconselhou Ulisses, quando este partiu, acerca dos perigos que encontraria em seu retorno a Ítaca.

Originalmente figura feminina, aqui eu a retrato como uma faceta interior de cada um de nós, independente de sexo. Era da natureza divina de Circe o desprezo pelos homens e ela não fugia disso, o que não a impediu de render-se a um deles. Fugir da própria natureza não é privilégio apenas dos deuses.

Quanto de Circe há em cada um de nós? Quantas vezes rendemos nossa natureza humana a um encanto ilusório, fazendo-nos abandonar a racionalidade em detrimento de uma emoção? Quantas pessoas já foram encantadas por nós, abstraindo-se de sua própria individualidade? Quantas vezes cegamos os olhos da razão e a quantos tornamos cegos, em nome desta mesma emoção?

Nós somos, ao mesmo tempo, Circe e Ulisses, alternando entre as figuras mitológicas ao sabor de interesses, vontades, desejos, destino ou, simplesmente, por falta de disposição para reagir ou por necessidade de se sentir onipotente, por hegemonia.

Mais uma vez explico, como já o fiz antes, que não tenho nenhum conhecimento psicanalítico, embora tenha lido algumas interpretações deste e de outros temas mitológicos. O que escrevo é a tradução de uma espécie de devaneio intelectual, a partir de experiências vividas, pensadas ou sentidas. Afinal, fiel ao que escrevi em outro post, a cada dia vivemos uma Odisséia interior ou exterior.

Também fiel a mim mesmo, não posso deixar de destacar que este post fecha, por assim dizer, uma seqüência de posts representativos de um momento de minha vida, começando com passagens. Nada muito radical ou dramático mas não deixa de ser, até autoreferencialmente, uma passagem e um cair de escamas de meus olhos.

Deixo minha Circe interior e suas formas externas representativas para trás. O mar está ali mesmo, à minha espera e é da natureza dos barcos singrá-lo. Sei de alguns riscos à frente, afinal, "são demais os perigos dessa vida", para quem tem paixão pelo viver ou pelo sonhar ou pelo imaginar ou por tudo isso junto, mas vale a pena corrê-los.

Cegos que somos, ou nos tornamos, por algum tempo, mantenho a capa do álbum de Baden Powell, uma vez que a música de fundo é "Cego Aderaldo", uma homenagem dele aos cegos repentistas nordestinos, que, mesmo sem a visão, buscam espalhar uma beleza sonora própria, através de uma música simples, mas forte e primal.


Escrito por Um Barco às 16h20

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