Sexta, 03/03/2006

Lótus

Desde 14 de fevereiro estou num doce flutuar, amadurecendo, ao longo desse processo, que atravessou o carnaval e desembocou agora, ao finalizar este post, no imaginário brasileiro, segundo o qual o ano só começa depois dessa festa.

Na verdade, a gestação do post antecedeu o carnaval e, como ocorreu em outras vezes, começou ao ouvir uma música, esta que toca agora, "Lótus", instrumental de autoria de Baden Powell e interpretada por ele, num álbum de 1969, "27 Horas de Estúdio".

Ouvindo a melodia, pensei, inicialmente, na Odisséia e me vi um daqueles marinheiros comedores de lótus, vivendo em um mundo de fantasia interior, esquecido da realidade, alheio a tudo, o que, em última análise e guardadas as devidas proporções, meu flutuar representava, num contexto muito particular.

"Lótus" era a música de abertura, um tema de inspiração barroca, com bateria e baixo fazendo contraponto jazzístico ao violão de Baden. O mesmo tema era, seguidamente dissecado em variações, bem ao estilo de uma "jam session" que, no final de contas o disco se tornou, já que, dizem, ele foi gravado de uma só vez, ao longo das 27 horas do título, numa verdadeira interiorização musical. Afinal, não é nossa vida um tema repetido em múltiplas variações?

No Egito antigo a flor de lótus era um símbolo de pureza e de renascimento, talvez pela sua característica de se fechar e afundar à noite, para emergir e reabrir com o novo dia. Na verdade, a flor de lótus dos egípcios era diferente do lótus hindu ou chinês, embora o sentido de pureza seja semelhante em todas as culturas. A posição clássica de meditação dos praticantes de yoga, com as pernas cruzadas, é chamada de lótus.

Ouvir "Lótus" foi como reviver aquele 1969, em que tive o LP nas mãos e me deliciei com a técnica e o lirismo de Baden Powell, que já conhecia de outras músicas. Ouvir "Lótus" foi repensar a odisséia diária que enfrentamos, interior e exteriormente, com todos os atrativos, perigos, ilusões e inevitáveis retornos à realidade.

Acreditasse eu em causalidade ou determinismo, diria que ouvi a música porque estava fadado a isso o que, cá entre nós, tiraria o gostoso do acaso, que nos surpreende, até agradavelmente, em muitos momentos.

Nessa odisséia particular que cada um de nós enfrenta, muitas são as ocasiões em que nos alimentamos, até prazeirosamente, de lótus, só para ficarmos na contemplação de um vazio interior, belo, já que espelho de nós mesmos, sem pensar na Ítaca distante porque próxima, até que algo nos impele a continuar a viagem.

Variações em torno de um mesmo tema, como na música, tendem a retornar ao tema inicial, como a lembrar do começo para, após um floreio, calmo ou majestoso, concluir, terminar, encerrar, deixando porém a lembrança da harmonia.


Escrito por Um Barco às 22h00

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