Sábado, 05/11/2005

A Natureza da Água

Chovia e pensei em água. Não como mar, lago, rio ou como um dos quatro elementos e seus desdobramentos astrológicos, mitológicos ou psicanalíticos, até porque pouco ou quase nada sei sobre essas coisas. Pensei na natureza da água.

Pensei em como é da natureza da água ocupar o local onde está sendo colocada, amoldando-se a cada dobra, a cada fresta, penetrando em cada espaço livre, em cada recanto, insinuando-se, impondo sua condição de molhar, embeber, e, ao mesmo tempo, de dissolver, diluir, amolecer, modificando-se, e, com isso, enfraquecendo sua própria natureza.

Também pensei em como é da natureza da água ser transparente, sem cheiro, sem sabor, e, mesmo assim, promover alterações em sua passagem, limpando os locais por onde escorre, levando consigo a sujeira, maculando-se, em troco da pureza deixada.

Por outro lado, também é da natureza da água tentar escapar do recipiente ou vaso onde se encontra, mesmo em condições normais, só necessitando, para isso, estar em contato com o ambiente. A água é volátil, inconstante, escorregadia, qualquer inclinação fazendo com que escorra em direção a um plano inferior, de menor energia.

Pensei em nós, nos sentimentos que, como a água, são fluidos, móveis, voláteis, adaptativos. Como a água, tão logo se instalam, tendem a ocupar nosso coração, preenchendo, embebendo, molhando cada espaço de intelecto, amolecendo-o, dissolvendo-o em emoção. Sentimentos que, a princípio, parecem transparentes, como a água, cristalinos, límpidos.

Pensei no que somos, na forma que assumimos no momento que a água penetra em nós. Esponjas, embebendo-se e inflando com a chuva forte da paixão. Vasos de porcelana, recebendo e acumulando o gotejar de mágoas. Toalhas, absorvendo e enxugando com leveza o orvalho do carinho e da amizade.

Pensei na natureza dos sentimentos em ocupar nosso interior, também como a água, penetrando cada espaço disponível, por um lado se misturando com tudo aquilo que trazemos guardado, no momento em que os internamos, insinuando-se entre os restos de lembrança, mágoas, alegrias, vivências, porém, por outro, dissolvendo parte do que tínhamos retido e criando algo novo.

E pensei, finalmente, nos estados, tanto da água quanto dos sentimentos. Quando os queremos ou os fazemos fixos, tornam-se cristalizados, como o gelo, recebendo nomes distintos, conforme a percepção interna de sua natureza. Quando em paz e harmonia são água num copo, sujeita a leves ondulações que o vento da vida sopra. Quando em estado de inquietude é vapor, em agitação, pressionando, buscando um escape ou lentamente se condensando como lágrimas numa superfície fria.

E fiquei parado, vendo e sentindo a chuva que caía, copiosa, escorrer pela capa impermeável que eu vesti, numa aparente proteção de mim mesmo, mas sabendo que, por mais que me protegesse, gotas iriam penetrar e eu me molharia, talvez mais do que desejasse e menos do que merecesse.


Escrito por Um Barco às 20h40


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