Sexta, 14/10/2005

Transcender

Acontece. É raro, mas acontece.

Já começa ao abrir os olhos. Não há motivo aparente, ou talvez até haja o que não importa, no que diz respeito ao efeito final. A gente acorda como se fosse outra pessoa, em outro mundo, espantosamente igual ao de sempre, porém com outro astral em relação ao despertar nosso de cada dia.

Vendo uma claridade maior nas cores, ânimo lá no teto, a solidão da cama não compartilhada parecendo oportuna, até mesmo desejada, sorriso no rosto ainda preso à teia do sono, como que vivendo um sonho bom, lá vamos nós. Pular da cama, de maneira lépida e fagueira ou se entregar à luxúria de um despertar lento e estudado, cada sentido se manifestando preguiçosamente, entramos em sintonia com a vida.

Passa longe, aquela idéia de que vamos enfrentar mais um longa jornada. Nada disso. Estamos, sim, na iminência de flutuar na corrente do dia, de beber lenta e prazeirosamente as horas que se apresentarão, de saborear cada encontro, de degustar cada olhar, de se inebriar com cada diálogo.

Transpor a porta em direção à rua é entrar num mundo ainda mais luminoso. Temos a impressão que todo o espetáculo da natureza e toda a paisagem urbana existem apenas para o prazer de nossos olhos, para serem admirados por nós, para que façamos parte dela, num todo harmônico, apesar da algaravia visual e sonora de sempre.

E caminhamos, sentindo uma espécie de comunhão com cada pessoa que por nós passa, independente das feições ou emoções que nelas lemos, uma sensação de sermos parte do todo, já que todos parecem sorrir, tudo parece sorrir, a vida é um sorriso.

E, como antevíamos, vamos bebendo as horas, numa permanente e prevalente condição de harmonia com o em torno. Problemas, contrariedades, discussões, está tudo ali, como sempre estiveram, apenas encolhemos os ombros à sua importância momentânea. Estamos de bem com o ser, somos o estado de equilíbrio entre o mundo e os outros, pertencemos, compartilhamos, vivemos, na acepção mais ampla e aberta do verbo viver.

Assim, nesta euforia mansa, o dia vai escoando, nos conduzindo a um entardecer, à beira de algum lugar onde, de preferência parados, mudos, acompanhamos o parto natural de uma noite, que aflora, lenta e silenciosa, até explodir num pranto luminoso e alegre de estrelas, que admiramos em silêncio, ultrapassando nossos limites, transcendendo nossa condição cotidianamente humana.

Não por acaso, escolhi, como fundo, uma música com o título "How To Open At Will The Most Beautiful Window", cuja tradução livre seria "Como Abrir, Quando Quiser, a Mais Linda das Janelas ". Embora não esteja ao alcance de nossa vontade abrir janelas assim, já que elas se abrem inesperadamente, a música faz, alegoricamente, o papel de moldura para a mensagem do post.


Escrito por Um Barco às 15h30


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