O rosto que olha meu rosto, Do espelho, me revela estranho E, de certa forma, familiar. Mescla de passado e de presente, Mistura do que fui e quis ser Com o que sou, embora não queira, Mas sou eu mesmo, acho... Quanto mais eu leio as frases do tempo, Desenhadas e riscadas na pele, rascunhos, Mais e mais entendo os olhos que me fitam. Mesma claridade, cor, brilho, Que me acostumei a ver, a ler, a ter, Descartando a existência de um futuro, Habitante contínuo do presente. O sorriso que o obrigo a me mostrar Já não é tão cristalino, tão leve, Antes um pouco sisudo, um pouco grave, Nada diferente do que sempre vi Se bem que diferente do que pensava, uma dia Ter, de qualquer modo, é um sorriso, E não uma face vazia de recordações. A cara que agora apresento ao espelho E que se esforça em parecer familiar, É minha imagem fiel e meu estranho interior, Desejo de perenidade, minha âncora Com o passado, continuidade, prevalência Da vontade de saber, de entender Aquilo que o espelho se nega a refletir. O presente que o espelho me expõe É plano, superficial, enganoso, E, no final, consigo ler, além do rosto sério, E do sorriso aparentemente frio, a gargalhada Que o espelho tenta ocultar de mim, Leio o que não devo, nunca, deixar de ser, E libero meu riso, gargalho, logo, vivo. E fico rindo para aquele riso solto, Preso na superfície plana do espelho, Até sentir a passagem do momento, E, até com certo alívio, relaxo, me acalmo, E devolvo ao espelho o controle que tomei, Para que a realidade objetiva retorne, Lavo o rosto, enxugo, vou trabalhar.
Escrito por Um Barco às 20h34
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