Sexta, 17/03/2006

Pr'um Samba

O violão começa sugerindo, em tom menor, breves dissonâncias, preparando para a entrada de um surdão quase elegíaco, marcação hipnótica por monocórdica de um compasso que não se alterará até o fim da música. E entra uma voz, musicalmente educada sem ser exuberante, honesta até nos chiados, falando de amor, samba e do coração que é como um documento.

"Pr'um samba"...a gente ouve e não estranha, até ver escrito o título do post e da canção que o emoldura, do álbum "Egberto Gismonti", de 1969, embora o arranjo tenha sido outro. Em 1972 a canção, agora sim, com o arranjo que ouvem, foi regravada e com o título escrito da mesma forma, desta vez no álbum "Água e Vinho", cuja capa pode ser vista ao lado, também de Egberto Gismonti que, diga-se de passagem é o autor da letra e música e seu intérprete.

Estranho como ouvir e ler podem despertar idéias distintas. Isso, sem falar que, se fosse apenas a letra falada não diria tanto. Confesso que já há algum tempo eu queria colocar esta música num post, só não sabia em que contexto, afinal, como bom taurino, preciso de uma explicação para tudo, principalmente para me justificar ou para me convencer, coisa que não é lá muito fácil.

Ouvindo a canção me vejo 30 anos atrás, 10 ilusões à frente, 100 esperanças futuras, nos 10 compassos da juventude recém encerrada, afinal eu havia me formado e começava minha vida de adulto, pelo menos legalmente. Fecho os olhos e deixo o som grave do surdão me embalar e vou perseguindo os dedos de Gismonti pelas cordas do violão, dissociando tudo em minha cabeça. Enquanto o bater do tambor me predispõe a um estado quase zen, o dedilhar das cordas aguça meu intelecto de eterno aprendiz de tocador de violão e a letra me propõe uma mensagem enigmática, que não pretendo entender, preferindo navegar na maré de sons.

A letra está aí, à direita, e sua leitura não evidencia nenhum poema arrebatador nem serve de veículo a alguma emoção desesperada. Na verdade, a primeira estrofe me faz lembrar uma espécie de protesto contra a burocracia intelectual. A segunda estrofe me fala de coisas que cabem tanto num choro quanto num samba, cavaquinho, flautinha, violão, tudo isso numa melodia em compasso de bossa nova, arranjo minimalista de voz, violão, surdão e uma bateria tardia, já quase no final.

Acho que a gente, com o amadurecimento, vai entendendo melhor o minimalismo global de algumas coisas, enxergando e extraindo algo, que pensamos ser por sofisticação da idade, das nuances percebidas, como o som meio perdido de prato de bateria, próximo ao último acorde dessa música (pelo menos eu percebi) ou como uma lembrança levemente incômoda de um amor findo.

Talvez não seja muito diferente na percepção que a idade nos faz ter das pessoas, seus significados, sua importância, desde que nossa postura seja tão zen quanto o som do surdão nos faz crer, nossa avaliação seja sempre a de quem aprende dinamicamente o novo e que cada persona-enigma que se nos apresenta seja, simplesmente, aceito como tal, como algo a ser desvendado com calma, sem a ameaça da esfinge, até porque o tempo já nos devora lentamente.

Eis uma música plena em sua separação de símbolos, pelo menos em minha cabeça e sem estar ligada a nenhum fato marcante de minha vida. Tanto é que, em 69 e 72, nem a percebi já que outras canções, dos dois albuns, me foram mais caras. Foi preciso ter vivido mais de 30 anos para ver, nos entreversos, além do que havia ouvido, à época.

Tendo deixado para trás a ilha de Circe, volto ao meu mar interior, onde sons me definem, onde canções me traduzem e de onde tiro algum sustento emocional do qual uma pequena parte tento compartilhar com quem me lê.


Escrito por Um Barco às 18h00

[ Comentários  ]