Segunda, 03/04/2006

Não era...

Não era para ser esse, assim como não era para ser agora, na verdade seria bem antes, não o que é, nem dessa forma. Refiro-me ao post, título e enfoque, se bem que poderia me referir a mim mesmo, meu tempo, ânimo ou, quem sabe, à vida, de uma maneira geral, até e principalmente a minha, embora tantos possam sentir o mesmo.

Quando se passa muito tempo flutuando, perde-se um pouco a noção do real objetivo, da ambiência em que o corpo se move, das inevitáveis interações que a vida impõe. Fica-se, segundo uma definição muito própria, numa espécie de alheamento, que eu diferencio de alienação. Alheamento é ter a percepção do em torno mas não interagir totalmente com ele, apenas com aquilo que interessa, no momento. Alienação é recusar-se a perceber o que nos cerca.

A volta de um estado de flutuação se dá por uma queda brusca e dolorosa no real, algo que não ocorreu comigo ou por um abrir de olhos e ver além da realidade subjetiva, rever-se, reverter. O foco vem aos poucos, incomodando, irritando, como a luz matinal na fresta da janela, justamente em nosso olho.

Estamos um pouco sensibilizados, pelo que chamaria de troca de pele emocional. As cobras, de tempos em tempo, descartam a pele, expondo outra, ainda muito sensível, o que as obriga a um cuidado maior na interação com o ambiente, isso quando não se escondem até que a nova perca a sensibilidade excessiva. Assim nos sentimos, nesse retorno ao real. Tudo, ou parte do tudo, nos afeta, não machucando, mas incomodando um pouco.

Não fosse a volta, não seria esse e sim uma continuação do anterior, num prolongamento do flutuar, tão gostoso, tão suave quanto irreal. Não fosse a realidade, seria a fuga para a música, para um samba ainda triste, num refletir sobre que foi, face ao que é, numa superposição meio fora de lugar, mas tridimensional no tempo, como as fotos e filmes 3D que parecem, sem os óculos apropriados, desenhos desfocados. E, aqui, a razão (o racional?) faz o papel dos óculos, nos proporcionando a ilusão de profundidade no tempo.

Não era para ser, mas é o que é, o que aqui está, o que me representa agora ou o que eu imagino como tal e, como tal, transmito, compartilho, afinal minha pele ainda está sensível e nada com um creme intelectual para barrar os raios emocionais, assim como um filtro solar.

E eu me pergunto o que é mesmo, senão uma visão até cubista do que me cerca, uma visão até enevoada pelo meu abrir de olhos? E me respondo que é o que é, porque é. O verbo ser é muito taxativo, por mais que brinquemos de estar, por mais que estejamos sendo o que não devemos ou não queremos.

Não sendo para ser o que é, mas tendo de ser, nada mais resta, senão expor, mostrar, esperando que talvez vocês entendam o que estou tentando transmitir, ou talvez não. Talvez eu ainda esteja parcialmente naquele alheamento e não perceba, fechado que estou em meu mundo, meu microuniverso, pelo menos agora.

Engraçado. Se não era para ser, mas até já foi, o que mais poderia ser, num contexto objetivo, senão algo assim? Pensando bem, e com o auxílio luxuoso de Fernando Pessoa, "...e o universo reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança...", apenas o senso do real, vizinho, próximo, palpável. E sabe que até me agrada?


Escrito por Um Barco às 22h00

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